Carta do Padre – Novembro de 2020

Todas as vezes que o fizestes a um destes mais pequenos, que são meus irmãos, foi a mim que o fizestes. (Mt 25,40)

Caro irmão, querida irmã, a paz.

Ao longo deste ano, temos meditado sobre a presença real de Jesus no meio de nós (ler Mt 18,20; Lc 22,27; Jo 20,19; 14,18; Mt 28,20; Lc 10,16; 22,19; Jo 10,3-4). De tantas maneiras se realiza e se manifesta essa presença suave e maravilhosa de Jesus na Sua Igreja: na Sagrada Liturgia e sacramentos, e de modo especialíssimo no sacrifício da missa, sobretudo nas espécies eucarísticas; na Sua palavra viva; na oração em comum; na existência de tantos homens e mulheres tocados pela graça santificante do Espírito de Deus. Quero meditar contigo este mês sobre um modo da presença de Jesus em nosso meio, a par]r desta palavra que nos visita sempre na Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo:

Todas as vezes que o fizestes a um destes mais pequenos…

Jesus, o Verbo Eterno, Deus Poderoso, identifica-se com os “mais pequenos”, deixando-se encontrar e servir na pessoa deles! Sim, o Deus invisível e todo poderoso (ler 1Tm 1,17; Ap 1,8), para dar-se a conhecer a nós e salvar-nos, fez-se nossa carne e entrou em nossa humanidade (ler Jo 1,14; Mt 1,21; 1Tm 2,16). Ele quis deixar-se encontrar nas realidades humanas, particularmente na nossa fraqueza e vulnerabilidade. Assim lemos no Catecismo da Igreja Católica: “Jesus compartilha a vida dos pobres desde a manjedoura até a cruz; conhece a fome, a sede, a indigência. Mais ainda: identifica-se com os pobres de todos os tipos e faz do amor ativo para com eles a condição para entrar no seu Reino” (CIgC, 544).

Aquele que tanto nos ajuda em nossas necessidades faz-se necessitado de nossa ajuda! Ó mistério tão grande! Como poderia Ele ser ajudado, senão assumindo nossa condição tão pobre e necessitada?! Ele deixa ajudar-se naqueles pequenos que ele chama “meus irmãos”. Nisso também se manifesta Sua grande misericórdia! Ele desce até nossas misérias, compadecendo-se de nós, isto é, sofrendo conosco, levando sobre Si e em Si nossos sofrimentos (ler Is 53,4; Mt 8,16-17), atraindo-nos para Ele e gerando entre nós os sentimentos que havia n’Ele (ler Fl 2,1-5). Assim, Seu amor não apenas transforma as nossas realidades exteriores de pobreza e necessidade, mas também nos vai transformando desde dentro.

São meus irmãos…

Jesus chama de “irmãos” os que sofrem. Lembro São Damião de Molokai, que consagrou sua vida ao cuidado dos leprosos e, como Jesus, não se envergonhava de chamar de irmãos aquelas pessoas segregadas e descartadas pelo mundo (ler Hb 2,9-12). Acabando por tornar-se também ele leproso, S. Damião testemunhava realmente ter aprendido, em sua carne, o significado de ser irmão em Cristo: fazer-se um!

O encontro com a miséria humana, com os sofrimentos físicos e espirituais, traz para o seguidor de Cristo uma oportunidade de amar, de ser instrumento do amor e da providência de Deus para os outros. E, como quem ama descobre a Deus, porque Deus é amor (ler 1Jo 4,7-21), aquela pessoa encontrada por nosso amor se torna para nós lugar do encontro com o próprio Jesus.

A mim o fizestes…

Jesus nos quer despertar para enxergar os “Seus irmãos” e fazer algo por eles. Ele nos chama a exercitar-nos no amor, um amor operativo, atuante, que nos move em direção ao serviço em favor do outro – diferente do sacerdote e do levita que, vendo o homem maltratado e abandonado, passam à boa distância dele e nada fazem. “Faz isso e terás a vida”, disse Jesus ao ensinar a urgência e exigência do amor na parábola do bom samaritano (ler Lc 10,25-37). Movendo-nos ao serviço de amor, Jesus se deixa ali encontrar por nós na pessoa necessitada e nos liberta do fechamento em que nos prendem nosso egoísmo cheio de descaso pelos outros, nossa negligência cheia de preguiça, nossa cegueira cheia de futilidades.

Há, de fato, muitos rostos diferentes da pobreza, material e espiritual, que esperam ser encontrados e “misericordiados”, como diria o papa Francisco, no serviço e no abraço de irmãos. É importante, contudo, advertir-nos das falsas doutrinas que, instrumentalizando a pobreza, tentam reduzir o alcance e a força dessa revelação de Cristo, e acabam por separar e dividir, como adversários, as pessoas, os “irmãos” de Cristo: pobres contra ricos, brancos contra negros, mulheres contra homens… Hoje é urgente dar-nos conta de uma degradação espiritual que essas ideologias têm promovido no mundo e que está na raiz de tantas misérias, injustiça, violência e mortes: um modo de pensar e viver a existência humana sem Deus, em oposição a Deus e a seus mandamentos, concretamente, contra Cristo, contra Seu Evangelho e Sua Igreja. Na vida de muitas pessoas, é algo assim: até acreditam em Deus, mas, na prática, pouco lhes importa conhecer e fazer o que Ele diz: importa o “eu”, a realização e a satisfação pessoal, sem referência aos critérios objetivos, perenes e certos da realidade, que são a Verdade, o Bem, a Beleza. Em consequência dessa degradação espiritual, vemos gerações de homens e mulheres egocêntricos, iludidos a respeito de sua liberdade e inteligência crítica, mas, na verdade, escravos na engrenagem da alienação, fúteis, vazios, fracos, adoecidos, e facilmente manipulados.

Não há liberdade sem a Verdade! Não há paz sem o Bem! Não há alegria sem a Beleza! Não há vida sem Deus, sem a salvação de Jesus! Podemos ver já essa rejeição a Deus ganhar as estruturas e ideias que se propagam nas sociedades e dominam o modo de pensar e viver, num verdadeiro paganismo moderno. A destruição de igrejas, a perseguição [sica e moral contra os que creem em Cristo, a desqualificação dos valores cristãos, o grande número de már]res nos nossos tempos, o silêncio omisso de poderosos, compõem um conjunto nada casual de uma clara posição ideológica e diabólica de ruptura e desejo de superação do pensamento de Cristo e de Sua proposta de vida.

O remédio para essa miséria espiritual está na comunhão com Cristo, que, sendo rico, fez-se pobre para nos enriquecer com sua pobreza (ler 2Cor 8,9). A pobreza de Cristo é o testemunho do seu amor misericordioso, da sua obediência redentora, e, por isso, nos enriquece, nos vence, nos cura, nos salva! Sendo nós pobres com Ele, e como Ele, podemos ser encontrados pelo serviço de amor dos nossos irmãos – e o amor de Cristo entre nós cresce, nos enriquece e vence a divisão! Também, ao entrar em comunhão com nossa pobre humanidade e dando-nos o exemplo de como viver as nossas fraquezas, Jesus as transformou desde dentro. Longe de ser uma maldição, nossos sofrimentos vividos por Cristo, com Cristo e em Cristo são um mistério de fé, um lugar de encontro com Ele, uma possibilidade de unir-nos a Ele e à Sua obra redentora, completando em nossa carne a parte de amor que nos cabe (ler Cl 1,24). E Seu amor em nós cresce, nos vence, nos cura, nos salva! Esse mistério é grande! Ele conosco, Ele por nós, Ele em nós!

Prossigamos! O Amor de Cristo nos uniu! Em Cristo, Pe. Júlio.